segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Poesia e pintura abstrata: a música das cores


Jacineide TRAVASSOS[1]

POETRY AND ABSTRACT PAINTING: THE MUSIC OF COLOURS
 

ABSTRACT:


In this article we address the evolution of the Horatian doctrine of Ut Pictura Poesis, the flirtation between the arts, focusing on the relationship between space and time through a comparative analysis between poetry and abstract painting. We emphasize the virtues of words and colours, investigating the image-sound and image-movement relation. In conclusion, in our analysis, there is a structural homology between poetry and abstract painting in relation to the spatiality and temporality, which is also a category of music. The theoretical tools we apply to undertake comparative studies are critical guidance regarding aesthetics, literature and semiotics.
 

 

Keywords: Poetry. Painting. Aesthetics. Semiotics of Culture. Intersemiosis.

RESUMO:

Neste artigo procuramos abordar a evolução da doutrina horaciana da Ut Pictura Poesis, o flerte entre as artes, privilegiando a relação entre o espaço e o tempo através de uma análise comparativa entre a  poesia e a pintura abstrata. Ressaltamos as virtualidades das palavras e das cores, investigando a relação imagem-som e imagem-movimento. Concluímos, em nossa análise, que há uma homologia estrutural entre  as artes em questão no tocante à espacialidade e  temporalidade, sendo esta também uma categoria da música. Os instrumentos teóricos, que adotamos para empreender esse comparativismo, são referentes à crítica de orientação estética, literária e semiótica.

 PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Pintura. Estética. Semiótica da Cultura. Intersemiose.

INTRODUÇÃO
Sabemos que para investigar a relação entre linguagem e realidade na poesia e na pintura, temos que alargar o conceito de texto e entendê-lo semioticamente como discurso, processo que abarca todas as artes. O texto, no âmbito semiótico, é fenômeno  translinguístico e Jean Molino (1989, p.25), como lingüista, também nos adverte que a base para a resolução da aporia, com respeito à necessidade de se instituir um modelo geral de texto, consiste em atribuir um sentido metafórico e heurístico à sua noção. Pergunta-se Molino: “O historiador de arte em frente a um quadro, o arqueólogo frente a um monumento, o geógrafo frente a uma paisagem, o sociólogo frente a um movimento social estão na mesma posição de um intérprete junto a um texto?” (MOLINO, 1989, p.26). Molino diz ainda que poderíamos, como boa medida, acrescentar que o físico está diante da natureza como diante de um livro scrito, segundo a fórmula de Galileu, em signos matemáticos.

Antes de Jean Molino, Iuri Lotman (1996, p. 149)  -  no início do século XX -  ressaltou o talento poliédrico de Lomonossóv, um dos fundadores da semiótica da Cultura, para quem “o elo que une domínios diferentes da vida no planeta é a linguagem”(MACHADO, 2003, p. 24). Segundo Irene Machado (2003), a semiótica da cultura funda, com base no legado de Lomonossóv, o moderno conceito de texto como um novo domínio de idéias científicas onde operam as mais radicais formas de semioses. Os semioticistas russos defendem a concepção do texto como unidade básica da cultura, e não do sistema lingüístico. Nesse sentido, uma dança, uma cerimônia, uma obra de arte e muitos outros produtos e manifestações culturais são considerados texto.
Os teóricos que tratam da intersemiose lançam luz sobre as mesmas questões abordadas por Molino. Julio Plaza (1987), autor d’A Tradução Intersemiótica, aponta Jakobson como o primeiro a discriminar os tipos de tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica.  Esta última que nos interessa  particularmente,   também   denominada transmutação, foi por ele definida como aquela que consiste na interpretação dos signos não verbais, ou de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema, a pintura e vice-versa.  Diz Dominique Maingueneau que:
 
a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre vários discursos [...]. A prática discursiva se define pela unidade de um conjunto de enunciados, e também é uma prática intersemiótica que integra produções na dependência de outros domínios semióticos (pictural, musical, etc.). ( MAINGUENAU, 1984, p.1-13)
 
Etienne Souriau (1983, p.11-13), em seu livro intitulado A Correspondência das Artes – Elementos de Estética Comparada, partindo de um aforismo de Victor Hugo: “O vento são todos os ventos” cria a paráfrase: “A arte são todas as artes”. Porém, Souriau afirma que a pesquisa, neste domínio, só será interessante se banir e interdisser severamente as metáforas imprecisas, as analogias confusas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem de outra. A respeito desta mesma questão, diz-nos Karel Boullart, professor da Universidade de Gand:
 
As intuições mais corriqueiras a respeito das ‘correspondências’ das artes tendem, em sua maioria, a cair na metáfora. Diz-nos que existem sonetos esculpidos e romances de composição arquitetônica, mas um soneto não é uma escultura e um romance não é uma catedral. Mesmo um poema manifestamente composto, segundo o princípio ‘música antes de mais nada’ (Verlaine) não é música propriamente dita: é, em primeiro lugar e fundamentalmente, um poema. (BOULLART, 1987, p.72)
 
Acreditamos que Molino, Lomonossóv, I. Lótman, Julio Plaza, Jakobson, Maingueneau, Etiene Souriau e Boullart, implodem o paradigma tradicional do texto legando o critério de textualidade e leitura, não só ao literário, mas também ao vasto domínio das várias linguagens e sistemas de significação. Os teóricos que citamos enfatizam bastante o fato de existir, em cada modalidade textual, qualias diferentes que alteram o seu modo de significar. Daí a necessidade de nos afastarmos das metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, mas conservam sua materialidade artística própria. Em nossa investigação, afirmamos uma correspondência entre a poesia e a pintura, cientes de que há uma identidade de estruturas em uma variedade de meios.
A intersemiose, o diálogo entre as artes, seja música, pintura ou cinema etc., jamais trata-se de um anseio eminentemente da arte contemporânea. Muitos o quiseram: Os gregos, Diderot (em carta endereçada a Abbé Batteaux escreveu: “Comparar as belezas de um poeta com as de outro poeta é coisa que já se fez milhares de vezes. Mas congregar as belezas comuns da poesia, da pintura e da música (…) eis o que resta fazer e o que vos aconselho a acrescentar ao vosso Beaux-Arts réduit à un même principe.[2] os poetas franceses, sobretudo Baudelaire (Les Parfums, les couleurs et les sons se répondent), Rimbaud em Voyelles (A noir, E blanc…), Verlaine (De la musique avant toute chose) e J. K. Huysmans (com seu personagem Des Esseintes), que alegoriza a própria estética no seu romance simbolista A Rebours. Outro exemplo dessa interatividade está em Scriabin n’O Poema do Êxtase  (interdiscursividade entre dança, música, cores, perfumes), lembramos ainda o ideário de uma completa fusão entre escultura abstrata e tecnologia de construção expresso por J. J. P. Oud e retomado na arquitetura por Walter Gropius e Le Corbusier. No âmbito das correspondências, sincronização dos sentidos e signos poderíamos citar exaustivamente, se é que já não o fizemos.
 
Ut pictura poesis 
Como vimos, a noção de parentesco entre as diversas linguagens artísticas constitui um topos revisitado e remineralizado ao longo dos séculos, independente da qualia artística de quem o realiza. A relação texto/tela, também não é uma prática recente, embora pouco explorada ainda nos estudos contemporâneos. Jean Hagstrum (1958) em The Sister Arts of Literary Pictorialism and English Poetry from Dryden to Gray, embora atenha-se à tradição inglesa, retraça a história da interrelação entre a pintura e a poesia partindo de suas origens. Segundo Hagstrum dois nomes apresentam-se como basilares nesta intersemiose: Horácio e Simonides de Cós. Horácio, que criou a expressão Ut Pictura Poesis em sua Ars Poetica, (anos 14 e 15 A.C.) postula: “Ut Pictura Poesis: erit quae, si propius stes, te capiat magis, et quaedam, si longius abstes; hace amat obscurum, volet hacc sub luce videri, iudicis argutum quae non formidat acumen.”( HORÁCIO, 1989, p.73)[3]
A teoria implícita no axioma horaciano orientou, por séculos, o caminho por onde havia de trilhar as discussões sobre as artes, mantidas sob a custódia das relações entre as representações imagéticas (pintura) e retóricas (poesia) fundadas sob a distinção valorativa: signos naturais e signos artificiais, respectivamente. Como salienta João Alexandre Barbosa (1994, p.11), esta concepção dominou, sobretudo, os períodos clássico e romântico na história da arte e da literatura. As comparações entre poesia e pintura eram mote perpétuo. Plutarco atribui a Simonides de Cós a formulação de que “a pintura é poesia muda e a poesia é uma pintura falante.” Baumgarten adverte que “é próprio da pintura representar o que é composto; e este procedimento é um procedimento poético.” (BAUMGARTEN, 1993, p.26)
Gotthold Efrain Lessing (1998) é apontado pelos historiadores da arte como o melhor leitor de Horácio em sua época, pois, na verdade, Lessing o releu dando um grande passo adiante de suas teorias. O seu tratado sobre as artes literárias e pictóricas data de 1766, foi publicado sob o título de Laokoon, ou Os Limites da Pintura e da Poesia. Suas indagações a respeito das artes são apresentadas a partir do famoso conjunto escultórico Laokoon, que representava o sacerdote troiano homônimo e seus dois filhos no momento de suas mortes, sob os encalços de duas serpentes que os enroscam e os mordem. Uma das versões sobre o fato narra que tal castigo deveu-se ao fato de Laokoon haver tocado os preceitos de Apolo. A obra é atribuída ao escritor grego Alexandre de Rodes em co-autoria dos filhos Atenodoro e Apolidoro.
Laokoon, aponta Aguinaldo Gonçalves (1994, p.31) em seu Laokoon Revisitado. Relações Homológicas Entre Imagem e Texto, pode ser definido como a “conjunção de várias tendências que se unem para um único propósito”, ou seja, criticar o arqueólogo Johann Joachim Winckelmann em suas Reflexões Sobre a Imitação das Obras Gregas na Pintura e na Escultura (Gedanken Über die Nachahmung der Grie Chischen Werker der Malerei und Bildhaverkunst, 1755). Podemos inferir, pela sua linha de abordagem, que Winckelmann também se baseia na Arte Poética de Horácio, assim como no Tratado Sobre o Sublime de Longino, privilegiando a obra escultórica como base de seus estudos. Porém seus argumentos revelam frágeis noções e impressionismos sobre a literatura e as artes visuais, sobretudo quando compara o Laokoon com a Eneida de Virgílio e o Filoctetes, de Sófocles. De modo contrário porta-se Lessin (1998, p.145) posto que desloca o comparatismo entre a pintura e a poesia do campo movediço da dicotomia: signos naturais vs. signos artificiais para a questão do espaço e do tempo.
Lessing possibilitou-nos pensar as artes pictóricas e poéticas a partir do uso diferenciado de seus meios de expressão: pintura (mímese do visível, dos corpos), poesia (mímese das ações). Enfim, Lessing estabeleceu a pintura como a arte do espaço, por excelência, e a poesia arte do tempo. Embora estas noções representassem um avanço para a época (daí a nossa obrigação de revisitá-las), hoje tornou-se inconcebível tal distinção, seja no campo da física, como bem nos demonstra Einstein, seja no campo das artes, à luz das diversas correntes da filosofia, citamos a Poética do Espaço de Gaston Bachelard como exemplo e, sobretudo sob o prisma da semiótica.
Mukarovsky (1990, p.81) critica Lessing por pensar que as artes são limitadas pelo caráter de seus materiais e por acreditar que os artistas não devem tentar ultrapassar os limites impostos por eles. Deste modo, considera que sua idéia base, hoje, encontra-se ultrapassada. A. Gonçalves, ao revisar o Laokoon, credita razão aos argumentos de Mukarovsky. Diz que “se aproximarmos a câmara às conquistas da pintura e da poesia anteriores ao romantismo, notaremos que já para aquela época tal idéia não procedia.” (GONÇALVES, 1994, p.32). Adverte que, da maneira como Lessing conjecturou a respeito da poesia e da pintura, os signos assumem, em sua teoria, um alto grau de superficialidade; são postos apenas quanto imitadores de corpos e ações. Sabemos que as artes não seguem este caminho ao correr dos tempos.
Diz Northop Frye que há um grau de razoabilidade incontestável que fale-se do ritmo “quando se desenvolve no tempo, e desenho, quando se distribui no espaço” (FRYE, 1993, p.81). Mas salienta que:
 
[...] todas as artes possuem um aspecto temporal e um espacial, embora estas categorias se desenvolvam de acordo com as possibilidades materiais de cada arte e seu modo de estruturação. Referindo-se à literatura, especificamente, ressalta que as obras literárias também se movem no tempo, como a música, e se estendem em imagens, como a pintura. (FRYE, 1993, p.81)
 
A Ut Pictura Poesis é comum a muitas épocas. Segundo Mario Praz, em seu texto Literatura e Artes Visuais, “desde os tempos remotos tem havido mútua compreensão e correspondência entre a pintura e a poesia”. (PRAZ, 1982, p.2) Diz-nos que idéias foram expressas por meio de pinturas, não só nos hieróglifos egípcios, como através de uma “longa e assaz copiosa” tradição simbólica, parte da qual foi brilhantemente evocada por Edgar Wind (1958), em seu livro acerca dos mistérios pagãos da Renascença (Pagan Misteries in the Renaissance).
No Renascimento, a relação poesia/pintura parecia inevitável, a exemplo do pintor Botticelli e dos poetas Policiano e Ficino, que compunham influenciando-se mutuamente. Muitos poetas, como Ariosto e Aretino, valeram-se de técnicas pictóricas para escrever. Pintores, tais como os simbolistas Gustave Moreau, Rodolph Bresdin, Odilon Redon, o expressionista Munch, entre muitos outros, extraíram idéias e imagens dos escritos de poetas e romancistas. Mas, em se tratando de um estudo intersemiótico, devemos afastar-nos das metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, porém conservam sua materialidade de linguagem e artística.
 
Poesia e pintura abstrata
 
Vimos que, dentro do enfoque da teoria de Lessing, com base na teoria clássica da mímese, o espaço é o lugar ocupado pelos corpos, pelos elementos estruturais da pintura: ponto, linha, superfície e volume. De acordo com a semiótica, lembramos que o espaço deixa de ser simplesmente um lugar ocupado pelas coisas e ganha força de linguagem. Devemos revisitar a importantíssima teoria de Lessing, mas não podemos aceitar, ao modo de Mukarovsky, Frye e A. Gonçalves, no domínio das artes, a separação rígida das categorias de espaço e tempo.
Bem sabemos que a poesia, a literatura, é imagem-som. Assim, temos uma só dimensão espácio-temporal na poesia de Ungaretti:
 
ROSA EM CHAMAS

 sobre um oceano
 de campainhas
 subitamente
 flutua outra manhã 

(UNGARETTI, 2003, p.153)[4]

 





Vejamos outro exemplo em Guilherme de Almeida:

 
INFÂNCIA 

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora” 
(ALMEIDA, 2004, p.26)



Em Ungaretti a Imagem “oceano de campainhas” é indicadora de uma grande hiperestesia, pois a água torna-se metaforicamente sonora, ao passo que indica também passagem de tempo: “flutua outra manhã”. No haicai de Guilherme de Almeida, igualmente hiperestésico, a “amora e o sol”, degustados em simultâneo, instauram o movimento do tempo, a captação do instante passado no tempo presente, como bem indica a expressão “chamava-se ‘Agora’ ”. Guilherme de Almeida tenta captar, pintar ou fotografar o instante da infância passada, ao modo de uma recordação lírica, como a concebeu Emil Staiger (1975, p.59-60): fusão do passado com o presente e fusão do eu com o outro. Do mesmo modo, em homologia estrutural com a poesia, dá-se com a pintura abstrata. Sendo o ponto índice de uma linha e formador dinâmico de outras figuras na tela, como demonstra-nos Kandinsky, admitimos, também, uma temporalidade na realização da dinâmica interna do quadro:
 








(Fig.1. Kandisnky, Improvisação Sonhadora)[5]

 
Ao estudar semioticamente a tela Improvisação Sonhadora, de Kandisnsky, diz Walda Leite que “o objeto é percebido, não como parte do espaço, mas por sua continuidade”. (LEITE, 1985, p.20) Adverte, ainda, que, desta maneira, o objeto passa a ser signo, pois mantém uma profunda dialética com o tempo, que, no caso, “é criado pela repetição de traços que espacializam a diacronia do movimento”. (LEITE, 1985, p.21) Lembramos também que o elemento temporal pode ser reconhecido através da dimensão longitudinal dos elementos estruturadores do quadro. Leiamos um trecho de O cão Sem Plumas (Paisagem do Capibaribe) de João Cabral de Melo Neto:

 

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada. 

O rio ora lembrava
a língua mansa
de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão

                                                Aquele rio
era como um cão sem plumas.
nada sabia da chuva azul,
da fonte cor de rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro
dos peixes de água,
da brisa na água 

[...]

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes
jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
abre-se numa flora
suja e  mais mendiga

como são os mendigos negros.
abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro 

[...]

(MELO NETO, 1994, p.105-106)
 

Cabral, como assinala Secchin (1985, p.77), vai gradualmente combatendo o caráter impositivo da metáfora em um processo contínuo de desconstelização da palavra, propõe a imagem do cão como rio, depois atribui ao cão e ao rio o que é próprio de um pano sujo e do pássaro: “plumas”. A ideia de temporalidade já se manifesta no elemento “rio” que se muta e simbiotiza-se, por alusão, com os elementos da paisagem por onde passa. A fanopeia é evidenciada na gradação de cores do poema: azul, cor de rosa e negro. As cores suaves, azul-rosa, são signos de uma amenidade que o rio Capibaribe não conhece. Domina o grito social da paisagem de um homem-anfíbio que vive na miséria. A cor que evidencia esse elemento é o negro, esta assinala a vida de lama do homem na lama. O rio-ser-paisagem instaura o sublime negativo.  
O Cão Sem Plumas assinala o caráter impermanente e mutável do tempo, do sentido das palavras e de todas as coisas, o “rio” não é o solista dessa música das palavras, mas se funde com o ser, com elementos vegetais, minerais e da cultura, antes aparece como um substantivo-caleidoscópico que se repete dando ritmo, sonoridade, instaurando um poema-jazz, onde tudo está em tudo. Essa repetição também assinala o  poeta não só como um ser engajado, mas como trabalhador das palavras. Podemos dizer, ao modo de Haroldo de Campos, que Cabral é um geômetra engajado. Contemplemos Mondrian:
                 (Fig.2.  Mondrian, Broadway Boogie-Woogie)[6]




Segundo Meyer Shapiro (2001, p.73-84), Mondrian, na tela em questão, caminha em direção à nova tendência voltada para a simetria, clareza e a legibilidade de uma arte que se materializa no questionamento e recombinação da sua própria matéria: cores primárias - branco, azul, vermelho e amarelo - linhas verticais e horizontais, enfim, ao abstrato, à “pintura pura”, ao neoplasticismo. A relação dessa tela com o abstrato e com a música é evidente, as unidades, verticais e horizontais, de cada conjunto de cores foram meticulosamente recombinadas e embaralhadas, ao modo da palavra “rio” no Cão Sem Plumas de João Cabral de Melo Neto, permanecem o geometrismo das figuras oblongas e quadradas mas sempre caleidoscopicamente recombinadas de modo a instaurar, simultaneamente, ordem e movimento. Vale ressaltar que o uso dos arranjos de cores primárias, na sua fase neoplasticista, estabelece ainda uma ligação com a sua fase neo-impressionista. Ressalto que ao criar suas telas de modo abstrato, Mondrian, como Cabral, não abdica do seu grito social, pois jamais recusa a realidade mas a aparência da realidade. Desse modo, exorta seu espectador a olhar a vida e a tela criticamente, mais uma vez trata-se de um geometrismo engajado
O título da tela, Broadway Boogie-Woogie,  já insinua um diálogo com a música e a dança, enfim com as categorias do movimento e da temporalidade. Como assinala Meyer Shapiro “[...] mesmo sem sabê-lo, provavelmente pensaríamos em música ao olhar esta tela maravilhosamente viva, colorida e repleta de jazz.” (SHAPIRO, 2001, p.79) Não esqueçamos também que a poesia é a dança das palavras, expressão do pensamento por imagem-som.
 
Conclusão
 
Como atestam os teóricos da literatura, à época do seu surgimento, no século XIX, a literatura comparada que era concebida como subsidiária da historiografia literária punha em relação apenas duas literaturas diferentes e preocupava-se, sobretudo, com a migração de um elemento literário de um campo a outro, ou seja, com as influências que exercia uma literatura nacional sobre outra. O comparatismo literário mantinha-se, desta forma, sob uma forte base de valor axiológico e resultava em um dado ecumênico falho. Visto que, como assinalou P. Brunel (1990, p.2), Pichois e Rosseau, “a reivindicação nacionalista é condenável pois sendo política, é frequentemente acompanhada de pretensões a superioridades étnicas.” De início o comparatista prestou-se a julgar a originalidade de cada literatura.
No século XX, o conceito de originalidade foi intensamente refutado por teóricos como Tinianov, Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva, entre outros, sendo substituído pela noção de intertextualidade. Sabendo-se, hoje, que a literatura nasce da literatura e que esta trata-se de um único palimpsesto  raspado  e reescrito sem cessar ao longo dos tempos, a literatura comparada ampliou seu método de abordagem e comprova que a obra literária produz-se em um constante diálogo de textos, por retomadas e trocas. Deste modo, supera a função, a priori, niveladora e internacionalista, convertendo-se em uma disciplina que põe em relação diferentes áreas das ciências e das artes, expandindo-se no vasto domínio das relações intersemióticas. Como chama-nos a atenção Jean Molino, Maingueneau, Boullart, entre outros teóricos que citamos, temos que alargar o conceito de texto, para além de suas propriedades puramente linguísticas, sistematizá-lo enquanto fenômeno traslingüístico, se pretendemos realizar uma exegese eficaz da relação entre as artes.
A interdisciplinaridade, no que se reporta ao comparatismo, não é novidade no campo das relações interartísticas – se lembrarmos o já citado estudo de G. E. Lessing com o seu Laokoon, ou os Limites da pintura e da poesia (1766) já tão distante de nós – mas as relações mútuas entre as artes têm sofrido muitas restrições. Há ainda resistências em admitir-se que a comparação dá-se, também, no ultrapassar as similaridades, que o comparatismo pode operar-se pelo confronto de elementos, por vezes mesmo, díspares. Tais questões não estão suficientemente avançadas no estado atual dos estudos em pauta e inúmeras pesquisas ainda estão por fazer.
O estudo da literatura comparada alcança, atualmente, o terreno das artes que constituem, por si, partes de uma totalidade: a Estética. O comparatista sem deixar de ter a literatura como principal objeto de investigação, deve interrogá-la, entendendo-a não como um sistema fechado em si mesmo, mas na sua implicação com outros códigos, sejam eles picturais, musicais, cinematográficos etc.
No estudo da representação literária calcado na abordagem intersemiótica – como o que empreendemos através das poesias e telas abstratas que estudamos – a pesquisa é interessante se banir e transcender, como nos disse Souriau, as metáforas imprecisas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem da outra. É preciso estarmos atentos ao fato de que pode haver similaridade entre a tradução de uma idéia artística em literatura, pintura, música, cinema, etc, mas cada linguagem traz consigo recursos peculiares e trata o assunto de modo específico. As várias artes possuem cada qual seu código artístico, sua evolução individual, de ritmo diferente. Daí a riqueza da comparação entre elas. Temos que ser rigorosos metodologicamente, se objetivamos consistência em um campo que, a princípio, parece ser vago e de difícil acesso.
Com base nas análises que fizemos, inferimos que há uma conjunção retórica entre a poesia e a pintura abstrata. Ambas se valem da imagem para instaurar a espacialidade. Afirmamos ainda que o texto poético, através da sequencialidade e da recordação lírica, dialoga com a categoria temporal. A pintura abstrata instaura o tempo por meio do movimento das formas e cores. Fica evidente que as artes em questão, ao agenciarem a temporalidade, assumem um parentesco também com a música. Enfim, poesia é sobretudo imagem-som e pintura abstrata imagem-movimento,  ambas música das cores.
 
REFERÊNCIAS
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BAUMGARTEN, A. G. Estética. A Lógica da Arte e do Poema. Petrópolis :Vozes, 1993.
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BRUNEL, P.; PICHOIS, C.; ROUSSEAU, A. M. O Que é Literatura Comparada? São Paulo: Perspectiva, 1990. 
DIDEROT. In: ASSEZAT, J et TOURNEUX, M. Ouvres Complèts de Diderot. Paris: Garnier, 1875. 
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  ____________________. Laokoon Revisitado. Relações Homológicas Entre imagem e Texto. São Paulo: Edusp, 1994.  
  HAGSTRUM, Jean H. The Sister Arts: The Tradicion of Picturalism and english Poetry from Dryden to Gray. University of Chicago Press, 1958. 
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   LEITE, Walda M. N.S.M.S. O Estético e o Semiótico num Código Pictórico. In:
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   Madrid: Cátedra, 1996. 
   MACHADO, Irene. Escola de Semiótica. A Experiência de Tártu-Moscou Para o Estudo da
   Cultura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. 
   MAINGUENEAU, Dominique. Genêse du Discours. Bruxelles: Mardaga, 1984.
 
   MELO NETO, João Cabral de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
   MILNER, John. Mondrian. New York : Phaidon, 2005.  
   MOLINO, Jean. Interpréter. In: REISCHLER, C. (dir.) L’Interprétation Des   Textes. Paris:
   Minuit, 1989. p.25-40. 
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   PRAZ, M.  Literatura e Artes Plásticas. São Paulo: Cultrix, 1982.
   SECCHIN, Antonio Carlos.  João Cabral: A Poesia do Menos. São Paulo, Duas
   Cidades, 1985.
 
  SCHAPIRO, Meyer. Mondrian. A Dimensão Humana da Pintura Abstrata. São Paulo:Cosac
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   SOURIAU, Étienne. A Correspondência das Artes. Elementos de Estética Comparada. São
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   WIND, Edgar. Pagan Misteries in the Renaissance. Londres: Faber and Faber, 1958.






[1] Universo (Universidade Salgado de Oliveira). Gestora da Pós-graduação em Literatura Brasileira e Arte. Recife, PE, Brasil.CEP: 51150-001.
[2] DIDEROT apud ASSEZAT, J et TOURNEUX, M (1875). Ouvres Complèts de Diderot. Paris, Garnier.
[3] HORÁCIO (1989). “Arte Poética”. In: Crítica e Teoria Literária na Antiguidade. Rio de Janeiro, Ediouro, p.73, tradução de David Jardim Júnior: Um poema é como um quadro: quanto mais perto estiverdes dele, mais vos impressionará, mas deveis ficar a uma boa distância; esse precisa de um canto bastante escuro, mas aquele necessita de luz plena, e resistirá ao cuidado exame do crítico de arte; esse só vos agradará a primeira vez em que  for visto, mas aquele vos deleitará tantas vezes quanto seja olhado. 
[4] Texto original. ROSE IN FIAME : "Su un oceano/ Dis scampanelli/ Repetina/ Un lattra matina"
[5] 1915,óleo sobre tela, pode ser visto em Munique no Staatsgalerie moderner Kunts. 
[6] Mondrian: Broadway Boogie-Woogie, 1942-43. Coleção, TheMuseum of Modern Art, Nova York. Doação  anônima.